CASA DO HAICAI
Poema ninja
Oh, não torça
o nariz para a poesia: houve um tempo em que não havia shoppings, mas saraus,
onde se encontravam moçoilas e mancebos, a ouvir piano e poesia entre chás,
biscoitos e licores. As moças tinham álbuns de poemas, e os moços decoravam
sonetos para fazer sucesso com elas. Isso acabou; mas hoje, entre um chope e
outro no bar, um rapaz da roda diz umas frases que ficam ecoando, como:
Pra que cara feia?
Na vida
ninguém paga meia
Uma garota,
dali a pouco, retruca:
Que viagem
ficar aqui
parada
Ele
olha para ela, e logo estão falando de Paulo e Alice, que o pessoal da roda
pergunta quem é. Vocês não conhecem, diz ele, todo só olhos e ouvidos para ela,
que pergunta se ele conhece este da Alice (Ruiz):
Vozes amigas
luzes acesas
chove melhor
Ele
pergunta se ela conhece este do Paulo (Leminski):
Confira
tudo que respira
conspira
O pessoal quer
saber que papo é esse, parece que em código, e é mesmo. Como explicar, assim de
repente, que estão falando de poesia?
Os amantes e
praticantes do haicai são uma tribo cultural como tantas, com seus mitos e
ídolos. Mito maior, Bashô, o poeta japonês que, lá pelo meio do século 17, deu
fino acabamento e dimensão espiritual a um conjunto de três versos, antes
usados para troças e piadas.
Na tradução do
baiano Oldegar Vieira, um dos pioneiros dessas pérolas poéticas no Brasil, o
mais famoso haicai de Bashô:
Ploc! Uma rã pula
no silêncio da
lagoa
e o silêncio
ondula
Em
Japonês o haicai não tem rimas, apenas a medida silábica dos versos, embora
cheios de “rimas” internas, ressonâncias e jogos de palavras. O paulista
Guilherme de Almeida, poeta muito habilidoso, inventou uma forma de haicai que,
de tão formalista, parecia feita para apenas ele fazer haicais - o primeiro
verso rimava com o terceiro, e o segundo verso tinha uma rima interna na
segunda sílaba:
Lava, escorre,
agita
a bateia. E enfim
na areia
fica uma pepita.
(E o
ponto no meio do segundo verso parece a pepita que ficou na bateia...) Mas o
modernismo libertou o haicai dessas amarras formais, embora muitos praticantes
continuem a fazer questão da estrutura clássica de 5-7-5 sílabas para os três
versos. Como aconteceu, porém, com outro tipo de poema que foi moda, o soneto,
essa forma rígida acaba por padronizar os haicais e asfixiar sua graça. No
entanto, a maioria, até intuitivamente, pratica o haicai como um “poeminha de
três versos”, pouco se importando com número de sílabas, mas com o ritmo, a
sonoridade e a graça próprias de cada haicai, como flores de uma espécie sempre
mutante.
Exemplo - mais
um do mito Bashô, só que “traduzido” por Leminski:
Casca oca
a cigarra
cantou-se toda
Aliás,
também pode-se fazer haicais encadeados, em que um “puxa” ou se liga a outro,
ou mesmo fazer haicais motivados por outros haicais, como este meu haicaipira
também sobre cigarras:
Tanta cigarra
nessa garra
de cantar
Ou
pode-se, com um haicai, responder a outro haicai - por exemplo, de novo de
Leminski:
Ameixas
ame-as
ou deixe-as
Não tive o
prazer de mostrar a ele, em vida, minha resposta:
Ameixas ou
amêndoas
tendo-as, deixa-as
não tendo, te
queixas
O tom
brincalhão de muitos haicais apenas evidencia sua popularização: gente sem
ambições artísticas, ou mesmo sem habilidade poética, mas amante de arte,
eventualmente consegue fazer seu haicai - o que não faz mal a ninguém, embora
irrite muito os puristas, uma turma que faz haicais só do jeito clássico, com
sílabas contadas, referindo-se apenas à natureza etc, regras enfim. Como a
confirmar que nada vivo tem regra além da menstrual, até esses chatos
conseguem, às vezes, fazer haicais graciosos e interessantes.
No fundo,
pode-se dizer que o haicai é um insight bem vestido. Ou uma sacada
poética. Um golpe de sorte e arte com as palavras (quem poderá dizer onde
começa uma coisa e termina outra?). Neste meu haicaipira, a repetição de lh
reproduz a transmissão genética, o DNA de geração para geração:
Orgulho
de olhar teu
brilho
no olho do filho
Chamo de
haicaipiras já para deixar bem claro que não seguem regras, além dos três
versos (ou mesmo três palavras), sem qualquer contagem silábica:
Quebra a modelagem
a porcelana
perfeita
é bobagem
Pode-se desentranhar
ou garimpar haicais em poemas de poetas que nem conheceram haicai, como Olavo
Bilac:
Nunca morrer assim
num dia assim
de um sol assim
Ou mesmo em
Castro Alves:
Bandeira
que a brisa do
Brasil
beija e balança
Ou até em
prosadores ou dramaturgos, como Brecht:
As coisas estão
como estão: por
isso mesmo
assim não ficarão
Já se vê que,
mais no fundo ainda, o sucesso do haicai é porque, ao contrário do “quadrado”
pensamento ocidental (daí o sucesso da quadra e do soneto?), o pensamento
oriental é “redondo”. O haicai clássico simboliza isso até na sua estrutura
espacial:
Verso curto
verso
maior um pouco
verso
curto
Trópico do Câncer, Equador, Trópico do
Capricórnio. Ou próton, neutron, elétron. Ou Ying e Yang e a energia que geram.
Ou tese, antítese e síntese - ou uma idéia, outra idéia e a sinergia das duas.
Essa forma tríade deve ser a chave da enorme penetração do haicai no
quadradismo do Ocidente.
Fora isso,
livre de normas aprisionantes, cada haicai tem seu ritmo - como este haicaipira, que imita um pequeno
solo de bateria, com os b e t, consoantes foneticamente
contundentes, fazendo bumbo e caixa, e
os s fazendo os pratos etc:
Não basta ser artista
tem de servir à arte
feito baterista
Cada haicai, a partir de um des-padrão inventivo
consagrado por Leminski, tem seus truques, caixinha que toca se tu te tocas. E
às vezes o truque não está no som, mas no sentido (ou até na prosódia -
experimente falar com pronúncia caipira):
Carma, é a vida
quanto mais longa
mais cumprida
O Brasil é fruto de mistura de raças e
culturas. Por que iríamos preservar o
haicai de se misturar com o acervo poético ocidental?
O sol cai muito abruptamente
mal beija o horizonte e vupt
deviam ser eternos os poentes
“Como?!”-
chego a ouvir os conservadores - “O primeiro verso é de 6 silabas, o segundo de
7, e o terceiro de 10! Heresia!” Mas é assim sempre, tem os que mexem a forma e
os que se conformam. O que seria do mundo se não houvesse conservadores e
inventores?
O haicai pode
ser também bem sintético:
Coração
músculo acústico
em liquidação
Pinta, às
vezes, um haicaizinho sem rima:
Sol
gema
na
frigideira azul do céu
nuvem clara
Há também os
haicais encadeados:
Pinhão
caixinha perfeita
de lembranças
Dentro
meu coração
de
criança
De vez em
quando, apresenta-se até um provocador haicai concretista:
A paz de descas
car uma cebol
a chorar
Por que não
pode o haicai ser também invocativo como uma oração?
Vosso último pedaço, pão
lambe o prato por nós
que comemos a vós
Ou pode ser
taxativo como um provérbio:
Na verdade, diz
que acha a felicidade
quem se acha feliz
Por ser
curtinho e encerrar um jogo de idéias, o haicai é facilmente memorizável.
Naquela mesa de bar, onde começou esta história, aqueles dois podem já ter
desfiado dezenas de haicais, porque é como piada: um vai lembrando outro...
Talvez você
seja daqueles que nunca se imaginaram fazendo qualquer arte, mas grandes
mestres garantem que todos praticam alguma arte, mesmo que seja a de fingir que
não têm arte alguma. E há casos de gente
que, conhecendo haicai, começa a fazer, de brincadeira, e torna-se mestre. Até mesmo o general Júlio César pode
ter tido seus momentos de haicai:
Vim
vi
venci
O haicai é
clássico e é pop. Como um minúsculo ninja poético, invadiu todos os idiomas. É
um precursor da globalização, produto super durável, jóia mental, pitada de
poesia na conversa.
Já pensou dar
um haicai de presente à pessoa amada? Não ria, arrisque o primeiro verso, o
segundo... A atração ou o choque das idéias e sons pode produzir o terceiro
verso e pronto! É perfeitamente possível, sim:
É
só ter um baita
respeito pelo tempo
esse
sirigaita
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