Haicaipiras,
haicais tipo Pellegrini
e também zaicais, haicais
sobre a natureza humana

Sobre Haicais:
 Ø Artigo - Jóia Poética (link)
Ø Haicais de Pellegrini - Artigo de Luiz Cláudio Oliveira (link)
Ø Artigo - Poema ninja (link)

Livro autografado
R$ 30,00

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Poema ninja

Artigo
CASA DO HAICAI
Poema ninja


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         Oh, não torça o nariz para a poesia: houve um tempo em que não havia shoppings, mas saraus, onde se encontravam moçoilas e mancebos, a ouvir piano e poesia entre chás, biscoitos e licores. As moças tinham álbuns de poemas, e os moços decoravam sonetos para fazer sucesso com elas. Isso acabou; mas hoje, entre um chope e outro no bar, um rapaz da roda diz umas frases que ficam ecoando, como:
Pra que cara feia?
Na vida
ninguém paga meia
         Uma garota, dali a pouco, retruca:
Que viagem
ficar aqui
parada
         Ele olha para ela, e logo estão falando de Paulo e Alice, que o pessoal da roda pergunta quem é. Vocês não conhecem, diz ele, todo só olhos e ouvidos para ela, que pergunta se ele conhece este da Alice (Ruiz):
Vozes amigas
luzes acesas
chove melhor
         Ele pergunta se ela conhece este do Paulo (Leminski):
Confira
tudo que respira
conspira
         O pessoal quer saber que papo é esse, parece que em código, e é mesmo. Como explicar, assim de repente, que estão falando de poesia?
         Os amantes e praticantes do haicai são uma tribo cultural como tantas, com seus mitos e ídolos. Mito maior, Bashô, o poeta japonês que, lá pelo meio do século 17, deu fino acabamento e dimensão espiritual a um conjunto de três versos, antes usados para troças e piadas.
         Na tradução do baiano Oldegar Vieira, um dos pioneiros dessas pérolas poéticas no Brasil, o mais famoso haicai de Bashô:
Ploc! Uma rã pula
no silêncio da lagoa
e o silêncio ondula
         Em Japonês o haicai não tem rimas, apenas a medida silábica dos versos, embora cheios de “rimas” internas, ressonâncias e jogos de palavras. O paulista Guilherme de Almeida, poeta muito habilidoso, inventou uma forma de haicai que, de tão formalista, parecia feita para apenas ele fazer haicais - o primeiro verso rimava com o terceiro, e o segundo verso tinha uma rima interna na segunda sílaba:
Lava, escorre, agita
a bateia. E enfim na areia
fica uma pepita.
         (E o ponto no meio do segundo verso parece a pepita que ficou na bateia...) Mas o modernismo libertou o haicai dessas amarras formais, embora muitos praticantes continuem a fazer questão da estrutura clássica de 5-7-5 sílabas para os três versos. Como aconteceu, porém, com outro tipo de poema que foi moda, o soneto, essa forma rígida acaba por padronizar os haicais e asfixiar sua graça. No entanto, a maioria, até intuitivamente, pratica o haicai como um “poeminha de três versos”, pouco se importando com número de sílabas, mas com o ritmo, a sonoridade e a graça próprias de cada haicai, como flores de uma espécie sempre mutante.
         Exemplo - mais um do mito Bashô, só que “traduzido” por Leminski:
Casca oca
a cigarra
cantou-se toda
         Aliás, também pode-se fazer haicais encadeados, em que um “puxa” ou se liga a outro, ou mesmo fazer haicais motivados por outros haicais, como este meu haicaipira também sobre cigarras:
Tanta cigarra
nessa garra
de cantar
         Ou pode-se, com um haicai, responder a outro haicai - por exemplo, de novo de Leminski:
Ameixas
ame-as
ou deixe-as
         Não tive o prazer de mostrar a ele, em vida, minha resposta:
Ameixas ou amêndoas
tendo-as, deixa-as
não tendo, te queixas
         O tom brincalhão de muitos haicais apenas evidencia sua popularização: gente sem ambições artísticas, ou mesmo sem habilidade poética, mas amante de arte, eventualmente consegue fazer seu haicai - o que não faz mal a ninguém, embora irrite muito os puristas, uma turma que faz haicais só do jeito clássico, com sílabas contadas, referindo-se apenas à natureza etc, regras enfim. Como a confirmar que nada vivo tem regra além da menstrual, até esses chatos conseguem, às vezes, fazer haicais graciosos e interessantes.
         No fundo, pode-se dizer que o haicai é um insight bem vestido. Ou uma sacada poética. Um golpe de sorte e arte com as palavras (quem poderá dizer onde começa uma coisa e termina outra?). Neste meu haicaipira, a repetição de lh reproduz a transmissão genética, o DNA de geração para geração:
Orgulho
de olhar teu brilho
no olho do filho
         Chamo de haicaipiras já para deixar bem claro que não seguem regras, além dos três versos (ou mesmo três palavras), sem qualquer contagem silábica:
Quebra a modelagem
a porcelana perfeita
é bobagem
         Pode-se desentranhar ou garimpar haicais em poemas de poetas que nem conheceram haicai, como Olavo Bilac:
Nunca morrer assim
num dia assim
de um sol assim
         Ou mesmo em Castro Alves:
Bandeira
que a brisa do Brasil
beija e balança
         Ou até em prosadores ou dramaturgos, como Brecht:
As coisas estão
como estão: por isso mesmo
assim não ficarão
         Já se vê que, mais no fundo ainda, o sucesso do haicai é porque, ao contrário do “quadrado” pensamento ocidental (daí o sucesso da quadra e do soneto?), o pensamento oriental é “redondo”. O haicai clássico simboliza isso até na sua estrutura espacial:
                                       Verso curto
                                      verso maior um pouco
                                               verso curto
        Trópico do Câncer, Equador, Trópico do Capricórnio. Ou próton, neutron, elétron. Ou Ying e Yang e a energia que geram. Ou tese, antítese e síntese - ou uma idéia, outra idéia e a sinergia das duas. Essa forma tríade deve ser a chave da enorme penetração do haicai no quadradismo  do Ocidente.
         Fora isso, livre de normas aprisionantes, cada haicai tem seu ritmo  - como este haicaipira, que imita um pequeno solo de bateria, com os b e t, consoantes foneticamente contundentes, fazendo  bumbo e caixa, e os s fazendo os pratos etc:
Não basta ser artista
tem de servir à arte
feito baterista
        Cada haicai, a partir de um des-padrão inventivo consagrado por Leminski, tem seus truques, caixinha que toca se tu te tocas. E às vezes o truque não está no som, mas no sentido (ou até na prosódia - experimente falar com pronúncia caipira):
Carma, é a vida
quanto mais longa
mais cumprida
        O Brasil é fruto de mistura de raças e culturas.  Por que iríamos preservar o haicai de se misturar com o acervo poético ocidental?
         O sol cai muito abruptamente
         mal beija o horizonte e vupt
         deviam ser eternos os poentes
         “Como?!”- chego a ouvir os conservadores - “O primeiro verso é de 6 silabas, o segundo de 7, e o terceiro de 10! Heresia!” Mas é assim sempre, tem os que mexem a forma e os que se conformam. O que seria do mundo se não houvesse conservadores e inventores?
         O haicai pode ser também bem sintético:
                                                        Coração
                                                  músculo acústico
                                                     em liquidação
         Pinta, às vezes,  um haicaizinho sem rima:
                                                        Sol gema
                                               na frigideira azul do céu
                                                        nuvem clara
         Há também os haicais encadeados:
                                                        Pinhão
                                                  caixinha perfeita
                                                   de lembranças

                                                          Dentro
                                                      meu coração
                                                        de criança
         De vez em quando, apresenta-se até um provocador haicai concretista:
                                                     A paz de descas
                                                       car uma cebol
                                                          a chorar
         Por que não pode o haicai ser também invocativo como uma oração?
                                                Vosso último pedaço, pão
                                                  lambe o prato por nós
                                                   que comemos a vós
         Ou pode ser taxativo como um provérbio:
                                                      Na verdade, diz
                                                   que acha a felicidade
                                                     quem se acha feliz
         Por ser curtinho e encerrar um jogo de idéias, o haicai é facilmente memorizável. Naquela mesa de bar, onde começou esta história, aqueles dois podem já ter desfiado dezenas de haicais, porque é como piada: um vai lembrando outro...
         Talvez você seja daqueles que nunca se imaginaram fazendo qualquer arte, mas grandes mestres garantem que todos praticam alguma arte, mesmo que seja a de fingir que não têm arte alguma. E há  casos de gente que, conhecendo haicai, começa a fazer, de brincadeira, e torna-se  mestre. Até mesmo o general Júlio César pode ter tido  seus momentos de haicai:
Vim
vi
venci
         O haicai é clássico e é pop. Como um minúsculo ninja poético, invadiu todos os idiomas. É um precursor da globalização, produto super durável, jóia mental, pitada de poesia na conversa.
         Já pensou dar um haicai de presente à pessoa amada? Não ria, arrisque o primeiro verso, o segundo... A atração ou o choque das idéias e sons pode produzir o terceiro verso e pronto! É perfeitamente possível, sim:
                                                    É só ter um baita
                                                    respeito pelo tempo
                                                        esse sirigaita
        
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